A pandemia do novo coronavírus estabeleceu um regime de quarentena mundial. No entanto, apesar de ser necessário no combate à covid-19, o isolamento social causará problemas ao sistema de saúde no futuro devido às demandas suprimidas do presente. Vários obstáculos são previstos por profissionais da área da medicina oncológica. Dados levantados pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), junto aos principais serviços de referência do país, nas redes pública e privada, estimam que ao menos 70 mil brasileiros com câncer deixaram de receber o diagnóstico nos quatro primeiros meses de pandemia.
Profissionais de saúde se preocupam com uma futura epidemia oncológica. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já esperava um aumento de casos até 2030. A entidade estima que daqui a dez anos o mundo terá 27 milhões de novos casos e 17 milhões de mortes por câncer. Médicos acreditam, contudo, que a data pode ser antecipada pela falta de diagnósticos. “Tivemos impacto direto no número de pessoas que não realizaram consultas. E esses pacientes, muito provavelmente, vão detectar a doença em um estágio mais avançado. Logo, o tratamento vai ser limitado”, explica o radioncologista Felipe Teles, do Hospital Imaculada Conceição, de Curvelo.
Membro titular da Sociedade Brasileira de Radioterapia, o médico explica que a limitação de tratamentos para um diagnóstico avançado pode significar cirurgias mais invasivas ou até mesmo menor chance de cura. “Alguns tratamentos, quando administrados nessa fase mais avançada, podem ser mais tóxicos, deixar mais sequelas e ter uma menor taxa de cura”, pontua. Adiar os exames de rotina, como mamografias, colonoscopias, entre outros, tem impacto direto na detecção de cânceres.
A preocupação de Teles é a mesma do patologista Clóvis Klock, presidente do Conselho Consultivo da Sociedade Brasileira de Patologia, que teme uma epidemia de casos avançados de câncer. “Vimos serviços que ficaram uma semana inteira sem receber um único material para análise”, alerta. A redução de diagnósticos diminuiu, consequentemente, os encaminhamentos feitos para os oncologistas e radioncologistas. “Os encaminhamentos reduziram consideravelmente. A gente tá falando de, aproximadamente, 50%”, indica o especialista.
Em entrevista ao programa CB.Saúde, o diretor do Hospital Sírio-Libanês em Brasília, Gustavo Fernandes, disse ser “muito nítida essa redução”. E destacou: “Eu sou um oncologista clínico e a minha vida é tratar de pacientes com câncer. Eu vejo a minha agenda, converso com os meus colegas e existe uma redução de mais de 50% no número de diagnósticos.”
Medo
O problema, no entanto, vai além. Uma segunda complicação detectada na pandemia de covid-19 é a ausência de pacientes já diagnosticados durante o próprio tratamento. Uma pesquisa feita pelo Instituto Oncoguia aponta que o medo por contágio do novo vírus foi o motivo mais citado por pacientes que tiveram o tratamento afetado nos últimos meses (veja arte). “Nós tivemos vários relatos de pacientes que não quiseram tratar quando a pandemia começou, simplesmente, pelo fato de não se sentirem seguros”, confirma o radioncologista Felipe Teles.
Maria Terezinha da Silva Oliveira, 55 anos, acompanha o tratamento do câncer de próstata do pai, Antônio Pereira da Silva, 87 anos, e adiou o início da radioterapia em razão do medo da pandemia. Ambos são moradores de Curvelo, cidade mineira que acumula quase 500 infecções e oito mortes pela covid-19. A indicação do tratamento foi feita em fevereiro, quando o Brasil ainda não tinha casos, mas Antônio só começou as sessões de radioterapia no final de julho.
“No início, você fica assustado e não sabe como é. O medo parece que toma conta”, conta a filha. Depois de ver que não podia mais esperar para continuar o tratamento, Antônio deu início à radioterapia e já fez 12 sessões. “A gente toma todos os cuidados. Saímos de máscara, vamos em um carro próprio para poder levar e trazer. O hospital também tem todos os cuidados e álcool para todo lado”, relata Terezinha.
Orientação
A indicação é de que todos os pacientes em tratamento falem com os médicos de referência para que recebam a orientação adequada. “Nós temos alternativas, mesmo diante da pandemia, seja trocar uma medicação endovenosa para uma medicação oral, seja reduzir o tempo de tratamento na radioterapia. Nós conseguimos, por exemplo, diminuir o número de frações para que o indivíduo não vá tantas vezes ao hospital. O mais importante, neste momento, é que os pacientes não abandonem o tratamento do câncer porque o câncer não vai esperar a pandemia passar”, completa Teles.
O grande problema em adiar o tratamento é o fato de que o câncer é uma doença tempo sensível. Ou seja, quanto mais o tempo passa, maior é a taxa de proliferação e progressão da enfermidade. “Esses tumores, certamente, não estão esperando a pandemia da covid-19 passar”, reforça o oncologista Gustavo Fernandes. O diretor do Hospital Sírio-Libanês ressalta que, hoje, a maior parte das estruturas de saúde já tem um nível apropriado de segurança para receber os pacientes. “Hoje, o medo tem que ser menor do que era ontem, porque, hoje, a gente conhece mais e se preparou para cuidar dos pacientes.”
Fonte: www.correiobraziliense.com.br / postado em 16/08/2020 06:00