O peso dos lucros de negócios e de outros ganhos fica cada vez maior no Produto Interno Bruto (PIB) enquanto a porção dos salários e contribuições dos trabalhadores vem caindo no Brasil desde 2017. Em 2016, a renda dos assalariados chegou ao pico: 44,7% do PIB. Desde então, caiu abaixo de 40%, afastando o Brasil do perfil das economias mais desenvolvidas e evidenciando a alta desigualdade.
Segundo o PIB medido pelo IBGE pela ótica da renda (que divide a economia entre capital e trabalho), essa fatia chegou a 39,2% em 2021, último dado disponível, o menor desde 2004. Para especialistas, ainda não houve recuperação.
Na outra ponta, o excedente operacional bruto, que corresponde ao lucro das empresas, fez movimento contrário. Passou de 32,1% em 2015 para 37,5% do PIB brasileiro em 2021, maior fatia da série histórica, iniciada em 2000.
Segundo economistas, três fatores contribuem para essa nova tendência: queda da renda do trabalho; redução de vagas e aumento dos lucros com digitalização e automação; e “pejotização” (mais empregados contratados como pessoa jurídica em vez de carteira assinada), o que faz o rendimento do trabalho ser considerado lucro de empresa.
— Há duas maneiras de ver a desigualdade: do ponto de vista da renda pessoal e dessa distribuição funcional da renda, entre capital e trabalho. Nessa medida não conseguimos identificar a desigualdade entre os trabalhadores, mas vemos que há mais renda apropriada pelo capital e menos pelos trabalhadores — explica Kátia Namir, gerente de Renda e Investimento de Contas Nacionais do IBGE.
A pandemia, iniciada em 2020, aprofundou essa tendência, que Fernando Montero, economista-chefe da Tullett Prebon Brasil, estima ter sido freada em 2022 e 2023, mas tudo indica que o nível de participação dos salários na economia segue abaixo de 40%, sem ter ainda voltado ao nível de 2019.
Isso porque dados mais recentes da Pnad, também do IBGE, apontam que a massa de rendimentos do trabalho contribuiu com 32% do PIB no fim do ano passado. Houve uma recuperação após a queda forte da pandemia, em 2020, mas ainda não foi suficiente para voltar o patamar pré-pandemia, em torno de 35%. O nível atual é o mesmo de 2014.
Recuperação é lenta
O economista diz que, para recuperar e espaço, o salário real tem que subir mais que o PIB e a produtividade na economia:
— Houve queda muito forte do rendimento do trabalho em 2021, e esses rendimentos demoram para voltar.
Esse período de queda da participação dos salários no PIB entre 2016 e 2021 foi marcado por duas crises. A primeira, a recessão iniciada em 2014, no governo de Dilma Rousseff, resultou em uma retração de cerca de 7% do PIB e foi seguida por um período de estagnação econômica com taxa de desemprego chegando a dois dígitos. A pandemia derrubou ainda mais o mercado de trabalho — com o desemprego atingindo o pico de 14% da força de trabalho em 2021, no governo de Jair Bolsonaro — e agravou esse processo.
— Há uma defasagem do impacto da recessão nos salários. Há rigidez para demitir e reduzir salário, por isso só vemos mudança nos anos seguintes — diz Kátia Namir, do IBGE, destacando que as atividades que mais cresceram nos últimos anos são intensivas em capital, precisam de muito investimento em equipamentos e menos de mão de obra. — Foi assim nesse período, com o crescimento da indústria extrativa e agropecuária mais intensiva em capital. Isso faz aumentar a participação do excedente operacional bruto.
Margarida Gutierrez, professora do Grupo de Conjuntura da UFRJ chama a atenção para o forte investimento em capital do setor de serviços nos últimos anos. O setor que mais emprega acelerou a informatização, aumentando os lucros:
— Com o avanço da Tecnologia de Informação (TI), as plataformas de comercialização (como lojas on-line), houve um aumento do volume de capital no setor de serviços.
Parcela é de 53,8% nos EUA
Para Cristiano Martins, gerente de Bens e Serviços de Contas Nacionais do IBGE, essa tendência pode ser positiva ou negativa para o bem-estar da população. Vai depender da estrutura econômica de cada país. Onde há maior participação dos trabalhadores nos lucros, por meios de ações de empresas por exemplo, pode ser um sinal positivo. Mas não é o caso do Brasil, afirma:
— Depende de como é distribuída a renda do capital. No Brasil, como os trabalhadores tendem a não ter muita participação no capital, é ruim.
Estatísticas da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as economias mais avançadas, mostram que os países mais desenvolvidos têm participação da remuneração dos empregados mais próximas de 50%. É de 48,2% na Zona do Euro, na União Europeia, chega a 53,8% nos EUA, 50,6% no Reino Unido. Já nos países em desenvolvimento, essa parcela cai bastante, abaixo dos 40%, como agora é o caso do Brasil. Fica em 37% no Chile, 34% na Colômbia e 26,9% no México.
Para Fernando Montero, a expansão da participação dos lucros na economia explica parte do comportamento da inflação no momento: índices se mantém baixos mesmo com rendimento do trabalho em alta (subiu 7,2% em 2023). Normalmente, quando os salários sobem, a inflação tende a acompanhar, se não houver aumento de produtividade.
— O crescimento do salário real está acontecendo em cima de margens de preço muito infladas, sem pressionar esses preços. Há uma gordura nos preços industriais, agrícolas e nos administrados (definidos pelo governo, como tarifas de energia e transporte). Tudo que não era salário estava inflado, com margens muito altas — afirma Montero.
Poder de compra
Mesmo com a alta recente, o economista avalia que, nos últimos anos, os salários sofreram “perdas atrozes”. O que favoreceu o consumo, na visão dele, foram transferências do governo (auxílios e Bolsa Família), aposentadorias e pensões, que não são contabilizadas especificamente nesse tipo de cálculo do PIB.
— Ao longo desse período, as transferências do governo (como o auxílio emergencial) foram enormes. As transferências começam a cair em 2022, antes que o salário recuperasse sua fatia na economia. Em 2023, os rendimentos do trabalho estão recuperando com o crescimento simultâneo das transferências — diz.
Montero, no entanto, diz que a perda de poder de compra do trabalhador se vê na inflação por grupos de preços nos quatro anos após a chegada da Covid-19. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA-15) ficou em 27,15% no período, mas a alimentação no domicílio subiu 45,61%, produtos industriais encareceram 27,43% e os preços administrados acumularam alta de 25,66%. Na outra ponta, serviços intensivos em trabalho subiram apenas 17,15%.
— Há um claro ganhador e um claro vencedor. No período, o salário real entregou mais PIB do que recebeu — diz.
Fonte: O Globo / www.contec.org.br / Postado em 5 de fevereiro de 2024