O STF (Supremo Tribunal Federal) retirou da Justiça do Trabalho e mandou para a Justiça Comum 21% dos casos sobre terceirização e uberização, de acordo com estudo feito por juízes e pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo).
A análise foi consolidada pela Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) e pelo núcleo de pesquisa O Trabalho Além do Direito do Trabalho, vinculado à Faculdade de Direito da USP.
O relatório, antecipado à Folha, será lançado nesta quinta-feira (2) no Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho em Foz do Iguaçu (PR).
Em outubro, no primeiro relatório, os autores apontaram um movimento no STF de julgar a validade de decisões trabalhistas via reclamação constitucional —um instrumento criado para garantir respeito a precedentes da corte. Agora eles buscaram avançar com uma análise qualitativa e quantitativa.
Segundo o levantamento, na remissão das reclamações à Justiça Comum estão incluídos casos de terceirização, pejotização e uberização. Estão excluídas as situações nas quais o STF apenas invalidou as decisões trabalhistas ou determinou a realização de um novo julgamento.
Os pesquisadores da USP e os magistrados do trabalho analisaram 1.039 decisões do STF, colegiadas ou monocráticas, no intervalo de 1º de julho de 2023 a 16 de fevereiro de 2024.
O tema suscita embates no meio jurídico.
Há juízes e advogados que afirmam que é da Justiça do Trabalho a competência sobre o tema e defendem o reconhecimento de vínculo de emprego, enquanto o STF reafirma, em decisões em série, que existem outras formas de relações de trabalho além das firmadas pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
O Supremo já decidiu sobre a validade da terceirização ou de qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas, mas a presidente da Anamatra, Luciana Conforti, afirmou que os ministros ampliaram esse entendimento. Para ela, o precedente não aborda pejotização e uberização, por exemplo.
“Há um desencontro da jurisprudência, mas pretendemos, com essas pesquisas e esses resultados, trabalhar nesse convencimento e superar o problema, porque isso afeta toda a sociedade. Não é bom para ninguém”, afirma a juíza.
Há magistrados do trabalho que têm reconhecido fraude à legislação e declarado haver vínculo de emprego entre as partes, mesmo que o contrato diga o oposto. Isso ocorreu em casos de advogados contratados como PJ, representantes comerciais e trabalhadores sob demanda.
Do outro lado, o Supremo tem considerado que a Justiça Trabalhista não está observando o que a corte decidiu sobre a terceirização e as formas alternativas de contratação e, por isso, tem cassado as decisões.
Na reclamação constitucional, é preciso que a decisão questionada e o precedente do STF supostamente desrespeitado tenham relação direta. Para os pesquisadores e juízes do trabalho, isso não ocorreu em 66% dos casos.
O levantamento também indicou que houve reanálise de fatos e provas —o que não é possível em uma reclamação— em 52% dos casos. Para isso, os autores consideraram a utilização desses elementos na parte da fundamentação das decisões do STF, não quando as informações aparecem em citações.
Conforti afirma haver uma preocupação com a tendência do STF.
“Sabemos que as relações de trabalho plataformizadas podem ser várias. Não é só Uber, não é só iFood. Temos hoje vários tipos de trabalho por plataformas. Como a competência constitucional da Justiça do Trabalho é para relações de trabalho, não só vínculos de emprego, isso esvaziaria a competência da Justiça do Trabalho de modo muito profundo e preocupante”, diz a juíza.
A posição dos autores, porém, não é unânime.
Ministro e ex-presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), Ives Gandra Martins Filho diz que temas como uberização e pejotização estão na classe de modalidades contratuais que receberam o aval do STF. Ele critica a redução da competência da Justiça especializada, no entanto.
“É voltar para antes da Constituição de 1988. No meu modo de ver, a Constituição garante a competência da Justiça do Trabalho para essas questões, até do Uber, mas não sob o prisma da relação de emprego, e sim como um trabalho humano que deve ser protegido por legislação especial”, afirmou o ministro.
Nelson Mannrich, professor titular da USP, disse que o mundo do trabalho mudou, mas a Justiça do Trabalho não admite.
“Querem ser rebeldes, colocar todo mundo dentro da CLT”, disse o professor. Segundo ele, há uma imagem de que “a empresa tem de ser quebrada, porque explora, tira o sangue do trabalhador”.
“Nós temos hierarquia nos tribunais. Se o Supremo tem uma posição a respeito de certo tema, essa posição tem de ser levada em conta pelos tribunais inferiores”, afirmou Mannrich.
Fonte: Folha de S. Paulo / www.contec.org.br / Publicado em 2 de maio de 2024